Decidi escrever minha biografia devido à necessidade de que eu não
me esquecesse do aprendizado. Seria desumano que as crônicas da minha vida
morressem por carência de relatos. Por isso, escrevo: para formatar um pouco da
cognição advinda da discriminação e do sofrimento. É entristecedor que as
consequências de uma vida (in)dependente - ora dependente porque limita a liberdade e
produz mentiras, ora independente porque exige que eu mesmo solucione as meus
problemas prosaicos - possam me levar à morte. Devo antecipar que posso, a
qualquer dia, cair morto. Esse caso, explico depois. É necessário que se faça
conhecer, antes de tudo, o início.
Começou-se com uma criança diferente das outras, com um menino
que, embora fosse menino, brincava com meninas também. Isso era, e é, uma afronta aos pais,
porque estes, os progenitores, devem certificar que o filho cumpra com os rituais
da masculinidade. "Bate se lhe baterem." Esse tipo de imposição não
era habitual apenas no meu âmbito familiar. Observei, durante meus anos, a
forma como esta obrigação se dava em outros relacionamentos. "Você deveria
participar mais." "Essa é sua família." "Por que chora
tanto?" Sentia-me excluído, sozinho. Inaugurou, ali, através da minha
obrigação moral de ser homem, a formação de uma personalidade. Eu andava com
minhas primas, não suportava a não-educação dos meus primos, eles eram
grosseiros, uns porcos. "Você não devia andar com meninas, quer
ser veado?" Eu não queria ser bicha. Odiava quando diziam isso de mim,
todavia isso era constante. Diziam que eu agia como uma “mulherzinha” – termo que
sempre fora uma ofensa para qualquer homem e uma obrigação para qualquer mulher
-, não sei se eu era, ou se eu apenas era um pouco mais romântico do que os
outros meninos. (Nunca tive alma efeminada, descobriria anos depois que, o que
consideravam em mim feminino, era apenas alma poeta.) Contudo, se eu era
uma “mulher”, devia, para agradar os outros, reprimir meus sentimentos. Hoje
tenho certeza que isso é uma coisa horrível a se fazer. Reprimir sensações não
ajuda a adquirir experiências, não constrói caráter, ao contrário, destrói
vidas e produz depressão. E isso que me aconteceu, sofri durante um largo período,
tornei uma pessoa ranzinza, achava-me dono da razão e um vitorioso por ter
conseguido, pelo menos para mim, ser um homem. E ninguém poderia dizer-me o
contrário. Virei um babaca como eles, e para eles, normal como qualquer um.
Neste tempo eu nem pensava em homossexualidade. Minha pouca idade não se
importava com essas transgressões – era a palavra que diziam. Ser homossexual
naquela época, para mim, era ser pedófilo, era ser um corruptor, era ser
promíscuo. Até meus treze anos, essas ideias se manteriam. Tentaria ser homem a
qualquer custo e fracassaria. A pior guerra seria contra eu mesmo, contra as
ilusões. Meu corpo se encontraria ferido
e nessa batalha eu só teria a perder. E perdi.
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