quarta-feira, 9 de maio de 2012

Conto da morte vivida

No fim da tarde, as luzes se acendiam para iluminar a noite e os faróis mostravam em flashes o trânsito em movimento. As mulheres, donas da cozinha, cozinhavam e os homens, donos do trabalho, trabalhavam. As crianças continuavam sendo doutrinadas: o Livro da Verdade apontava o caminho a percorrer. As árvores, ao respirar, se engasgavam com a poluição da cidade e a cidade, ao respirar, se engasgava com os poucos verdes de árvore lá presentes. Os pescadores, angustiados no balançar do rio, lamentavam que, ao pescar, pescavam só lixo. Os lixos não se lamentavam, a água os acalmavam. Os padres, ao ligar em um filme adulto, se masturbavam para manter o celibato e as freiras não se masturbavam, estas rompiam o celibato e rompiam a vagina, havia uma fila de meninos que esperavam duros pela sua inicialização sexual. Os ladrões roubavam e eram presos. As Prostitutas abortavam e eram presas. Os suicidas suicidavam-se e eram levados ao Inferno. O policial roubava e não era preso. Os mendigos, negros e indígenas repousavam na calçada. E os que eram como eu, estes vomitavam toda forma de amor. Enquanto o sol girava em torno da Terra, o barulho da cidade enfraquecia e eu, sozinho ao andar às ruas, cessava o silêncio. Não havia silêncio onde me havia. Eu estava lá. Foi com um tiro que o silêncio e o barulho se apagaram. Eu não estava mais lá. A carnificina estava feita. Todos naquela rua vieram para presenciar a minha morte. Estavam chocados. Algumas mulheres choravam e diziam: "Ele era tão novo." e os homens ligavam para uma funerária.

Quando eu morri foi quando eu nasci. Meu valor estava lá: na minha morte. Antes disso: não! Julgavam-me hedonista, satanista e egocêntrico. É verdade, eu era, quer dizer, eu sou. Só que depois da morte eu pude ser de verdade. No último segundo antes da minha morte, foi que eu senti dor: a vida, que tanto vivi, passou tão rápido. Eles não conheciam essa vida em que viver era o objetivo. Após isso, eu me lembrei que desde que eu nasci eu soube: "Eu seria assassinado!". E eu fui. Em um mundo em que não se pode viver, eu vivi. Isso era um crime. Eu era o culpado por todo o mal que existia no mundo. Eu merecia ser morto. A profecia dos homens de bem foi concretizada.

A verdade é que todo esse julgamento foi em vão: Eu aproveitei todos os paus e vaginas que pude, de tamanhos e formas que nenhum deus sabe (isso inclui o seu deus e os outros que ainda não foram inventados). Li todos os livros que, após descoberto seu conteúdo, foram queimados na fogueira.  Ri todos os sorrisos com verdade, e senti-me bem fazendo bem, bom, fiz-me bem. Doei-me inteiro a todo tipo de amor, doei-me aos estudos, à filosofia e à vida que me matara. Vivi e lamento ter passado tão rápido.

Fui cremado. A rua foi limpa e meu corpo em pó e carbonizado estava aos ventos. O meu pó andava, barulhento com o vento, pelas casas e ruas. Ao me respirarem, pude alojar-me nos pulmões de cada um. As mulheres largaram suas tortas no forno e foram trabalhar junto aos homens. Os homens saíram das indústrias e puderam manobrar também um outro tipo de maquinário: um fogão. As crianças passaram a ler outros tipos de livros, e outras Verdades foram encontradas. As árvores, ao me respirarem, se floresceram e a cidade, ao me respirar, tornou-se viva. Os pescadores começaram a pescar liberdade e os peixes, agora livres, destruíram a barreira de lixo entre as águas e pedras. Os padres e as freiras largaram a batina e passaram a agradecer a mim pela liberdade prometida: Deus os libertou. Os Ladrões não roubaram mais, havia alimento e prazer para todos. As Prostitutas abortaram e foram respeitadas pela sua escolha. Os suicidas foram salvos por abraços e afagos. O policial deixou de ser o que era, sua função era desnecessária, poderia agora ser outra coisa, talvez um escritor. Os mendigos, negros e indígenas foram aceitos e adotados na sua ausência: ora na ausência de casa, ora na ausência de cor e ora na ausência de roupas. E os que eram como eu puderam ser livres. E eu estava LIVRE também.

Nenhum comentário:

Postar um comentário