terça-feira, 1 de novembro de 2011

Mal de Parkinson



Ela arrumou os quartos dos seus dois filhos, ela limpou os banheiros da casa e agora estava lavando as louças espalhadas pela pia. Suas costas doíam, mas ela tinha que deixar tudo limpo. Mesmo com 69 anos, ela sabia que ela deveria limpar. Tirava as gorduras da panela como se estivesse tirando as rugas da sua velhice, como se aquilo estivesse mesmo acontecendo. Ela suava, e sorria vitoriosa a cada panela limpa. Depois começou a lavar os pratos. Pusera detergente na esponja e esfregava lentamente sincronizando com sua mansa vida. Até que viu aquele prato onde estava escrito '40 anos'. Era a comemoração do seu  longuínio casamento. Pegando o prato, olhou fixamente para ele. Olhou como se fosse o seu maior inimigo, olhar de ódio. Disse-lhe: "Que porra de prato é esse?". E tampou o prato na parede como quem estivesse numa final de jogo de dardos. O prato se espatifou e se transformou em vários cacos e se espalharam pelo o chão da cozinha. Não havia mais tranquilidade. Só o silêncio assustador que envoltara aquela pobre mulher.

A mulher sentou no chão azulejado e as lágrimas começaram a escorrer pelas suas bochechas rugosas. Ela gritava para a casa vazia: "Eu não aguento mais." E lembrou do seu casamento. "Carlos, seu filho da puta, além de odiar sua mãe, eu nunca quis casar com você. Você sempre foi um carma na minha vida. Eu sempre quis sentir o Fernando em mim, e não você. Era ele quem eu imaginava comigo na cama." Os pássaros na janela voaram assustados com medo de serem mortos pela sanguinária mulher. "E os roxos no meu rosto? Era vergolhoso eu ter que dizer para os meus filhos que tinha caído na rua, como se eu não soubesse andar... Carlos, apesar de ser velha, pelo menos eu não sou broxa igual você." Deu um chute com o pé espalhando mais os cacos de porcelana. "Não sei o que eu faria se ainda estivesse aqui. Sério, acho que se você não tivesse morrido, eu mesmo teria o matado." Agora segurava um pedaço do prato como se fosse uma grande faca afiada prestes a sacrificar um inocente bicho.

Ela não terminou, foi até ao quarto do filho mais velho. Abriu a terceira gaveta da cômoda, e procurando depressa tirou uma grande tesoura. "Ah, Frederico, seu drogado." gritou enquanto cortava e furava o lençol azul-bebê sobre a cama. "Você não deveria tratar sua mãe assim. Eu fiz tudo pra você. E você não aprendeu nada. Começou a beber, seu vagabundo, e largou os estudos." Lençol já estava despedaçado sobre as suas próprias mãos. "Ainda trazia mulher aqui em casa como se a casa fosse sua. Como se essas mulheres fossem  boas suficientes para sujar sua cama com porra e suor. Estes lençóis que eu limpo e você os sujava com qualquer uma. E você, um folgado, nunca contribuiu, nunca ajudou."

O chão estava coberto de pedaços de pano. A mulher voltou a guardar a tesoura e enxugar as lágrimas do rosto. Pegou uma vassoura e arrumou o quarto novamente. O crime foi ocultado.

Enquanto andava até a cozinha, a sua ilusória vida passou por seus olhos. Ela viu o curso de direito que ela não fez, o carro que ela não aprendeu a dirigir, os quadros que ela não pintou mas que ela tanto gostava de pintar, viu o sexo que ela não fez e viu os filhos que ela não teve. Até viu os amigos que ela não fez e as amizades que ela não cultivou devido ao temperamento difícil do lúgubre marido.

Já na cozinha, ela ouve o barulho da chave abrindo a porta. Não se surpreende com a chegada do filho mais novo que já era de se esperar. É o único homem que eu ainda não perdi as esperanças, ela pensou.

- Mãe, o Mal de parkinson está atacando? - disse o filho com um riso irônico no canto esquerdo da boca observando o prato quebrado no chão. Ela não respondeu.

O choro correu por dentro. Ela não havia mais filhos. Ela não havia mais marido. Ela não queria ninguém. Na verdade, ela só queria a vida que ela não teve. Ela queria voltar aos 20 anos. Ela não queria mais as rugas nem os ossos frágeis conquitados durante os anos. Ela queria a juventude de volta.

Ela foi para o seu quarto o mais rápido que pode. Ela trancou a porta para que ninguém visse o que ela faria. Ela tirou o quadro da frente, mostrando um cofre. Demorou um pouco para lembrar a senha, mas logo conseguiu destrancá-lo. Lá estava a caixa preta. Lá estava o seu tesouro. Ela tirou a pequena caixa do cofre. Os seus olhos brilhavam. Era sua juventude. Abriu a caixa, tirou um batom vermelho e passou em sua boca.

Ela se olhava no espelho como se ainda tivesse 20 anos, e não 69. Ela penteava os seus cabelos enrolados e embranquecidos. Admirava seu olhar um pouco cansado mas verdadeiro. Levantou, colocou sua roupa íntima mais bonita e voltou a se olhar no espelho. Então, subitamente, Alice beijou sua imagem refletida, beijou como nenhum homem havia a beijado antes. Era a marca de batom sobre o espelho. Era o amor-próprio que salvara sua vida.

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